5 de março de 2012

Magia negra e feitiçaria: aspectos históricos da Igreja Católica


Magia negra e feitiçaria: aspectos históricos da Igreja Católica


"Não vos dirijais aos magos, nem interrogueis os adivinhos,
para que vos não contamineis por meio deles".
(Lev 19,31)



Antiguidade da magia negra ou feitiçaria

“A magia negra ou diabólica, ou simplesmente feitiçaria, consiste num poder oculto, que permite ao mago obter efeitos superiores à eficiência dos meios realmente empregados” — define o  Pe. Leonardo Azzolini S.J. (Pe. Leonardo Azzolini S.J., La Magia Secondo la Teologia Morale, col. 1832)

A feitiçaria é encontrada em todas as culturas e em todas as épocas; apresenta-se sob aspectos diversos, mas sempre com uma característica em comum que é o recurso a fórmulas e rituais mágicos, cabalísticos, para curar doenças, prever coisas futuras, assegurar o sucesso de empreitadas, etc. Mais particularmente, a capacidade de fazer o mal, de prejudicar outros. A magia estava tão difundida na Antiguidade, que consistia um perigo para o Povo Eleito, o qual era tentado a imitar vos vizinhos.

A Bíblia ressalta essa prática no Egito. O livro do Êxodo (7, 11 ss), narra como, tendo Moisés e Aarão feito prodígios diante do Faraó (transformacção de uma vara em serpente e as águas do rio em sangue) os magos do Faraó, pela acção do demónio fizeram o mesmo. O livro de Isaías (47, l2ss) e o de Daniel (1, 20; 2, 2ss) mostram a importância da magia entre os babilónios. Também os gregos romanos nada faziam de importante sem antes consultar as pitonisas e os oráculos certos do seu contributo para o sucesso da sua civilização.

Por isso Deus estabeleceu a mais severa das punições para quem recorresse a mágicos e adivinhos, ou invocasse os espíritos: a pena de morte (Ex 22, 18; Lev 20,27; 19,26-31; 20,6; Deut 18, 9-14).

Mesmo depois da Redenção tais práticas, infelizmente, não cessaram (cf. At 13, 6-10; 16, 16-18). Aliás o próprio Divino Mestre havia predito que se levantariam falsos profetas, os quais fariam prodígios e milagres que enganariam até os bons (Mt 24, 24). Nos primeiros tempos do Cristianismo os Padres da Igreja combateram muito a feitiçaria; e na Idade Média, os grandes Doutores - como João de Salisbury (1120-1180), São Tomás de Aquino (1225-1274) e São Boaventura (1221-1274), entre outros, continuaram o mesmo combate, estudando a fundo a feitiçaria.

A época, entretanto, em que o problema se tornou mais vivo, foi no começo dos Tempos Modernos, em virtude da enorme decadência religiosa que se seguiu ao declinio da Idade Média, com a explosão de orgulho e sensualidade do Renascimento e, finalmente, a crise da revolta contra a Igreja, que gerou o Protestantismo. De facto, sobretudo dos séculos XV ao XVII, inúmeros Papas e Concílios provinciais promulgaram documentos alertando contra a prática da feitiçaria.

É nessa época que surge um dos documentos mais autorizados e secretas sobre a acção de bruxos e feiticeiras, a bula Summis Desiderantes, do Papa Inocêncio VIII (1484-1492).


Documentos pontifícios contra a feitiçaria

A bula de Inocêncio VIII

A bula Summis Desiderantes, de 6 de dezembro de 1484, descreve a perversa acção dos feiticeiros em certas regiões da Alemanha. O Papa começa por manifestar o seu sumo desejo de que “toda depravação herética seja varrida de todas as fronteiras e de todos os recantos dos fiéis”.

A feitiçaria é aí tratada como depravação herética. E a razão é porque, em geral, as pessoas que se entregam à feitiçaria acabam por ter uma concepção herética a respeito do demónio, atribuindo-lhe qualidades divinas, ou substituindo-o ao próprio Deus. Os próprios propósitos que as levavam a recorrer aos feitiçeiros eram contrários à vontade divina. Por vezes, até venenos eram encomendados a estes magos.

A bula passa então à descrição das muitas práticas de feitiçaria, tal como constava ocorrer na Alemanha:

“Chegou-nos recentemente aos ouvidos, não sem que nos afligíssemos na mais profunda amargura, que em certas regras da Alemanha ... muitas pessoas de ambos os sexos, negligenciando a própria salvação e desgarrando-se da Fé Católica, entregaram-se a demónios íncubos e súcubos (íncubo é a forma masculina e súcubo a forma feminina tomada pelo espírito das trevas para manter relações com feiticeiros de um e outro sexo) e pelos seus encantamentos, pelos seus malefícios e pelas suas conjurações, e por outros encantos e feitiços amaldiçoados e por outras também amaldiçoadas monstruosidades e ofensas horríveis, têm assassinado crianças ainda no útero materno, além de novilhos, e têm arruinado os produtos da terra, as uvas da vinha, os frutos das árvores, e mais ainda: têm destruído homens, mulheres, bestas de carga, rebanhos, animais de outras espécies, parreirais, pomares, prados, pastos, trigo e muitos outros cereais. Estas pessoas miseráveis ainda afligem e atormentam homens e mulheres, animais de carga, rebanhos inteiros e muitos outros animais com dores terríveis e lastimáveis e com doenças atrozes, quer internas, quer externas; e impedem os homens de realizarem o acto sexual e as mulheres de conceberem, de tal forma que os maridos não vêm a conhecer as esposas e as esposas não vêm a conhecer os maridos; porém, acima de tudo isso, renunciam de forma blasfema à Fé que lhes pertence pelo Sacramento do Batismo, e por instigação do Inimigo da Humanidade, não se excusam de cometer e de perpetrar as mais sórdidas abominações e os excessos mais asquerosos para o mortal perigo das suas próprias almas, pelo que ultrajam a Majestade Divina e são causa de escândalo e de perigo para muitos”. (In H. Kramer-J. Sprenger, O Martelo das feiticeiras, pp. 43-46.)

Em seguida, o Papa refere-se aos dois inquisidores que nomeou para essa região, professores de teologia e membros da Ordem dos Dominicanos, os Padres Henrique Kramer e Jacó Sprenger, aos quais pede todo o apoio para que “as abominações e atrocidades  em questão não permaneçam sem punição”. Sendo necessário, recomenda a busca do auxílio do braço secular, isto é, das autoridades civis.

Tem-se comentado que esta bula não tem valor doutrinário, mas apenas de constatação de factos. Mas é significativo que tanto ela como as demais bulas de outros Papas tomam com toda a naturalidade a existência de feiticeiras e os resultados de suas negras artes mágicas.


Outros documentos

Em 1500, o Papa Alexandre VI escreveu ao Prior de Klosterneubourg e ao inquisitor Kramer para se informar dos progressos da feitiçaria na Boémia e Morávia. Alguns anos mais tarde, o Papa Júlio II ordenava ao inquisitor de Cremona que tomasse medidas contra aqueles que abusavam da Eucaristia num sentido maléfico ou que adoravam o diabo. O Papa Leão X, pela Bula Honestis Petentium Votis, de 1521, elevava um protesto contra a atitude do Senado Veneziano, que se opunha à acção dos inquisitores de Brescia e de Bérgamo contra os feiticeiros. O Papa fazia ameaças de excomunhão e de interdito. Pouco depois, Adriano VI adoptava uma atitude semelhante com a Bula Dudum Uti Nobis, dirigida ao inquisitor de Cremona. O seu sucessor Clemente VII escreveu no mesmo sentido ao governador de Bolonha.

É verdade que Urbano VIII (1623-1644), chamou a atenção dos juízes para que não se deixassem levar por uma repressão inconsiderada em relação à feitiçaria. (Cf. Émile Broutte, La Civilisation Chrétienne du XVI siècle devant le problème satanique, pp. 365-366.)

O número de documentos de Concílios provinciais, sobretudo da Alemanha, nos séculos XVI e XVII é excessivo para ser citado aqui. Em todos eles as autoridades eclesiásticas insistem na repressão das práticas de feitiçaria e no julgamento dos culpados.

Não posso deixar de fazer aqui uma chamada de atenção para o facto de, a dado momento, a própria Inquisição perpetrar actos do demónio maiores do que os dos feiticeiros e bruxas que perseguia.


As leis civis

As leis civis da época proibiam igualmente tais práticas e os magistrados leigos instruíam os processos de feitiçaria: “Os juristas opuseram a rigidez do Direito ao fanatismo da superstição, a serenidade da legislacção ao ódio dos camponeses cheios de preversão. ... Os processos fazem-se cuidadosamente, com um desejo profundo de conhecer a verdade. A sua duração não é, com frequência, senão um sinal a mais do desejo de evitar todo o erro judiciário... O feiticeiro tido como culpado é condenado ao fogo. É a única pena que a lei conhece. Mas essa sentença tem numerosas suavizações". (Émile Broutte, op. cit., p. 379.)

Não há dúvida de que possa houve excessos e erros judiciários. Os historiadores românticos e anticlericais do século passado, retrataram os inquisidores, e outros envolvidos, com um fanatismo cego, fruto de uma ignorância estúpida. É preciso lembrar que os magistrados dos séculos XVI e XVII eram conhecidos pelo seu espírito de erudição verdadeira universal, abarcando quase todos os campos do saber, e a sua independência de julgamento era muitas vezes comprometida por interesses políticos, ideológicos, regiosos e pessoais.

As campanhas desencadeadas contra a bruxaria no começo dos tempos modernos, uma época de grande tensão religiosa, que culminou com a explosão protestante, não foram privilégio das regiões católicas, mas, deram-se - e até com mais intensidade -  nos países que passaram para a heresia – Inglaterra é o grande exemplo. Porém, mais do que o problema histórico, sempre difícil de precisar, o que importa aqui é a questão da doutrina: a possibilidade, segundo a teologia católica, da existência de feiticeiras e bruxos.


Consenso dos teólogos e moralistas católicos

A referida bula de Inocêncio VIII deu ocasião a que dois teólogos, nomeados inquisidores pelo Papa — os já citados Padres Henrique Kramer e Jacó Sprenger — escrevessem um livro para analisar, do ponto de vista teológico, a prática da feitiçaria: Malleus Malleficarum — O Martelo das Feiticeiras, continuamente traduzido e publicado nas várias línguas do Ocidente. (Heinrich Kramer e James Sprenger, O Martelo das Feiticeiras Malleus Maleficarum, tradução de Paulo Fróes, Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 2° edição,1991. Cf. J. Paquier, Inocent VIII, DTC, VII, 2ême partie, cols. 2002-2005.)

Numa argumentacção escolástica, eles recorrem aos grandes Doutores da Igreja — em especial a Santo Agostinho e São Tomás de Aquino — para mostrar como Deus pode permitir ao demónio que atenda às solicitações de homens e mulheres pérfidos que recorram à sua ajuda. Narram que os factos extraordinários, atribuídos em geral aos bruxos e feiticeiras, não estão acima da capacidade angélica do demónio sobre a matéria. A existência de bruxos e feiticeiras tem sido aceite pacificamente por todos os moralistas católicos. Ademais de todas as provas que se podem tirar das Sagradas Escrituras e do Magistério da Igreja, a prática da bruxaria é confirmada “pela opinião de todos os teólogos, cuja unanimidade traz uma certeza absoluta em matéria de doutrina. Ora, não existe um manual de teologia moral que não fale da magia e da feitiçaria como tendo sempre existido e existindo ainda”. ("L´Ami du clergé”, Le demonisme, n°44 (1902) p. 978.)

(Fonte: “Anjos e Demónios - A Luta Contra o Poder das Trevas”, Gustavo Antônio Solímeo - Luiz Sérgio Solímeo)

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