Magia negra e feitiçaria: aspectos históricos da Igreja Católica
"Não vos dirijais aos magos, nem interrogueis os
adivinhos,
para que vos não contamineis por meio deles".
(Lev 19,31)
Antiguidade da magia negra
ou feitiçaria
“A magia negra ou diabólica,
ou simplesmente feitiçaria, consiste num poder oculto, que permite ao mago
obter efeitos superiores à eficiência dos meios realmente empregados” — define
o Pe. Leonardo Azzolini S.J. (Pe. Leonardo
Azzolini S.J., La Magia Secondo la Teologia Morale, col. 1832)
A feitiçaria é encontrada em
todas as culturas e em todas as épocas; apresenta-se sob aspectos diversos, mas
sempre com uma característica em comum que é o recurso a fórmulas e rituais mágicos,
cabalísticos, para curar doenças, prever coisas futuras, assegurar o sucesso de
empreitadas, etc. Mais particularmente, a capacidade de fazer o mal, de
prejudicar outros. A magia estava tão difundida na Antiguidade, que consistia
um perigo para o Povo Eleito, o qual era tentado a imitar vos vizinhos.
A Bíblia ressalta essa
prática no Egito. O livro do Êxodo (7, 11 ss), narra como, tendo Moisés e Aarão
feito prodígios diante do Faraó (transformacção de uma vara em serpente e as
águas do rio em sangue) os magos do Faraó, pela acção do demónio fizeram o
mesmo. O livro de Isaías (47, l2ss) e o de Daniel (1, 20; 2, 2ss) mostram a
importância da magia entre os babilónios. Também os gregos romanos nada faziam
de importante sem antes consultar as pitonisas e os oráculos certos do seu
contributo para o sucesso da sua civilização.
Por isso Deus estabeleceu a
mais severa das punições para quem recorresse a mágicos e adivinhos, ou
invocasse os espíritos: a pena de morte (Ex 22, 18; Lev 20,27; 19,26-31; 20,6;
Deut 18, 9-14).
Mesmo depois da Redenção tais
práticas, infelizmente, não cessaram (cf. At 13, 6-10; 16, 16-18). Aliás o
próprio Divino Mestre havia predito que se levantariam falsos profetas, os
quais fariam prodígios e milagres que enganariam até os bons (Mt 24, 24). Nos
primeiros tempos do Cristianismo os Padres da Igreja combateram muito a
feitiçaria; e na Idade Média, os grandes Doutores - como João de Salisbury
(1120-1180), São Tomás de Aquino (1225-1274) e São Boaventura (1221-1274),
entre outros, continuaram o mesmo combate, estudando a fundo a feitiçaria.
A época, entretanto, em que o
problema se tornou mais vivo, foi no começo dos Tempos Modernos, em virtude da
enorme decadência religiosa que se seguiu ao declinio da Idade Média, com a
explosão de orgulho e sensualidade do Renascimento e, finalmente, a crise da
revolta contra a Igreja, que gerou o Protestantismo. De facto, sobretudo dos
séculos XV ao XVII, inúmeros Papas e Concílios provinciais promulgaram
documentos alertando contra a prática da feitiçaria.
É nessa época que surge um
dos documentos mais autorizados e secretas sobre a acção de bruxos e
feiticeiras, a bula Summis Desiderantes, do Papa Inocêncio VIII (1484-1492).
Documentos pontifícios
contra a feitiçaria
A bula de Inocêncio VIII
A bula Summis Desiderantes,
de 6 de dezembro de 1484, descreve a perversa acção dos feiticeiros em certas
regiões da Alemanha. O Papa começa por manifestar o seu sumo desejo de que
“toda depravação herética seja varrida de todas as fronteiras e de todos os
recantos dos fiéis”.
A feitiçaria é aí tratada
como depravação herética. E a razão é porque, em geral, as pessoas que se
entregam à feitiçaria acabam por ter uma concepção herética a respeito do
demónio, atribuindo-lhe qualidades divinas, ou substituindo-o ao próprio Deus.
Os próprios propósitos que as levavam a recorrer aos feitiçeiros eram
contrários à vontade divina. Por vezes, até venenos eram encomendados a estes
magos.
A bula passa então à
descrição das muitas práticas de feitiçaria, tal como constava ocorrer na
Alemanha:
“Chegou-nos recentemente aos
ouvidos, não sem que nos afligíssemos na mais profunda amargura, que em certas
regras da Alemanha ... muitas pessoas de ambos os sexos, negligenciando a
própria salvação e desgarrando-se da Fé Católica, entregaram-se a demónios
íncubos e súcubos (íncubo é a forma masculina e súcubo a forma feminina tomada
pelo espírito das trevas para manter relações com feiticeiros de um e outro
sexo) e pelos seus encantamentos, pelos seus malefícios e pelas suas
conjurações, e por outros encantos e feitiços amaldiçoados e por outras também
amaldiçoadas monstruosidades e ofensas horríveis, têm assassinado crianças
ainda no útero materno, além de novilhos, e têm arruinado os produtos da terra,
as uvas da vinha, os frutos das árvores, e mais ainda: têm destruído homens,
mulheres, bestas de carga, rebanhos, animais de outras espécies, parreirais,
pomares, prados, pastos, trigo e muitos outros cereais. Estas pessoas
miseráveis ainda afligem e atormentam homens e mulheres, animais de carga,
rebanhos inteiros e muitos outros animais com dores terríveis e lastimáveis e
com doenças atrozes, quer internas, quer externas; e impedem os homens de
realizarem o acto sexual e as mulheres de conceberem, de tal forma que os maridos
não vêm a conhecer as esposas e as esposas não vêm a conhecer os maridos;
porém, acima de tudo isso, renunciam de forma blasfema à Fé que lhes pertence
pelo Sacramento do Batismo, e por instigação do Inimigo da Humanidade, não se
excusam de cometer e de perpetrar as mais sórdidas abominações e os excessos
mais asquerosos para o mortal perigo das suas próprias almas, pelo que ultrajam
a Majestade Divina e são causa de escândalo e de perigo para muitos”. (In H.
Kramer-J. Sprenger, O Martelo das feiticeiras, pp. 43-46.)
Em seguida, o Papa refere-se
aos dois inquisidores que nomeou para essa região, professores de teologia e
membros da Ordem dos Dominicanos, os Padres Henrique Kramer e Jacó Sprenger,
aos quais pede todo o apoio para que “as abominações e atrocidades em questão não permaneçam sem punição”. Sendo
necessário, recomenda a busca do auxílio do braço secular, isto é, das
autoridades civis.
Tem-se comentado que esta
bula não tem valor doutrinário, mas apenas de constatação de factos. Mas é significativo
que tanto ela como as demais bulas de outros Papas tomam com toda a
naturalidade a existência de feiticeiras e os resultados de suas negras artes
mágicas.
Outros documentos
Em 1500, o Papa Alexandre VI
escreveu ao Prior de Klosterneubourg e ao inquisitor Kramer para se informar
dos progressos da feitiçaria na Boémia e Morávia. Alguns anos mais tarde, o
Papa Júlio II ordenava ao inquisitor de Cremona que tomasse medidas contra
aqueles que abusavam da Eucaristia num sentido maléfico ou que adoravam o
diabo. O Papa Leão X, pela Bula Honestis Petentium Votis, de 1521, elevava um
protesto contra a atitude do Senado Veneziano, que se opunha à acção dos
inquisitores de Brescia e de Bérgamo contra os feiticeiros. O Papa fazia
ameaças de excomunhão e de interdito. Pouco depois, Adriano VI adoptava uma
atitude semelhante com a Bula Dudum Uti Nobis, dirigida ao inquisitor de
Cremona. O seu sucessor Clemente VII escreveu no mesmo sentido ao governador de
Bolonha.
É verdade que Urbano VIII
(1623-1644), chamou a atenção dos juízes para que não se deixassem levar por
uma repressão inconsiderada em relação à feitiçaria. (Cf. Émile Broutte, La
Civilisation Chrétienne du XVI siècle devant le problème satanique, pp.
365-366.)
O número de documentos de
Concílios provinciais, sobretudo da Alemanha, nos séculos XVI e XVII é
excessivo para ser citado aqui. Em todos eles as autoridades eclesiásticas
insistem na repressão das práticas de feitiçaria e no julgamento dos culpados.
Não posso deixar de fazer
aqui uma chamada de atenção para o facto de, a dado momento, a própria
Inquisição perpetrar actos do demónio maiores do que os dos feiticeiros e bruxas
que perseguia.
As leis civis
As leis civis da época
proibiam igualmente tais práticas e os magistrados leigos instruíam os
processos de feitiçaria: “Os juristas opuseram a rigidez do Direito ao
fanatismo da superstição, a serenidade da legislacção ao ódio dos camponeses
cheios de preversão. ... Os processos fazem-se cuidadosamente, com um desejo
profundo de conhecer a verdade. A sua duração não é, com frequência, senão um
sinal a mais do desejo de evitar todo o erro judiciário... O feiticeiro tido
como culpado é condenado ao fogo. É a única pena que a lei conhece. Mas essa
sentença tem numerosas suavizações". (Émile Broutte, op. cit., p. 379.)
Não há dúvida de que possa
houve excessos e erros judiciários. Os historiadores românticos e anticlericais
do século passado, retrataram os inquisidores, e outros envolvidos, com um
fanatismo cego, fruto de uma ignorância estúpida. É preciso lembrar que os
magistrados dos séculos XVI e XVII eram conhecidos pelo seu espírito de
erudição verdadeira universal, abarcando quase todos os campos do saber, e a
sua independência de julgamento era muitas vezes comprometida por interesses políticos,
ideológicos, regiosos e pessoais.
As campanhas desencadeadas
contra a bruxaria no começo dos tempos modernos, uma época de grande tensão
religiosa, que culminou com a explosão protestante, não foram privilégio das
regiões católicas, mas, deram-se - e até com mais intensidade - nos países que passaram para a heresia –
Inglaterra é o grande exemplo. Porém, mais do que o problema histórico, sempre
difícil de precisar, o que importa aqui é a questão da doutrina: a
possibilidade, segundo a teologia católica, da existência de feiticeiras e
bruxos.
Consenso dos teólogos e
moralistas católicos
A referida bula de Inocêncio
VIII deu ocasião a que dois teólogos, nomeados inquisidores pelo Papa — os já
citados Padres Henrique Kramer e Jacó Sprenger — escrevessem um livro para
analisar, do ponto de vista teológico, a prática da feitiçaria: Malleus
Malleficarum — O Martelo das Feiticeiras, continuamente traduzido e publicado
nas várias línguas do Ocidente. (Heinrich Kramer e James Sprenger, O Martelo das
Feiticeiras Malleus Maleficarum, tradução de Paulo Fróes, Editora Rosa dos
Tempos, Rio de Janeiro, 2° edição,1991. Cf. J. Paquier, Inocent VIII,
DTC, VII, 2ême partie, cols. 2002-2005.)
Numa argumentacção
escolástica, eles recorrem aos grandes Doutores da Igreja — em especial a Santo
Agostinho e São Tomás de Aquino — para mostrar como Deus pode permitir ao
demónio que atenda às solicitações de homens e mulheres pérfidos que recorram à
sua ajuda. Narram que os factos extraordinários, atribuídos em geral aos bruxos
e feiticeiras, não estão acima da capacidade angélica do demónio sobre a
matéria. A existência de bruxos e feiticeiras tem sido aceite pacificamente por
todos os moralistas católicos. Ademais de todas as provas que se podem tirar
das Sagradas Escrituras e do Magistério da Igreja, a prática da bruxaria é
confirmada “pela opinião de todos os teólogos, cuja unanimidade traz uma
certeza absoluta em matéria de doutrina. Ora, não existe um manual de teologia
moral que não fale da magia e da feitiçaria como tendo sempre existido e
existindo ainda”. ("L´Ami du clergé”, Le demonisme, n°44 (1902) p. 978.)
(Fonte: “Anjos e
Demónios - A Luta Contra o Poder das Trevas”, Gustavo Antônio Solímeo - Luiz
Sérgio Solímeo)
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